O estado de direito
01h56m
Um dos valores mais importantes dos estados modernos decorre da obrigatoriedade de se respeitarem regras procedimentais muito rígidas em vários domínios de intervenção do Estado, nomeadamente daqueles seus órgãos cuja função é susceptível de contender com direitos fundamentais. Desde logo nos tribunais, onde estão há muito estabelecidas as chamadas proibições de prova. Ou seja, os tribunais não podem decidir com base em todas as provas que lhe são apresentadas, mas tão só daquelas que forem obtidas em respeito pelas regras legalmente fixadas.
Para que uma decisão judicial seja justa não basta que aprecie a questão substantiva controvertida com base nas provas apresentadas, mas tem também de apreciar a conformidade dessas provas com a legalidade processual ou constitucional.
São conhecidos inúmeros casos em que se prescindiu da realização da justiça material (da aplicação do direito substantivo), porque as provas, apesar de demonstrarem a prática dos factos ilícitos, foram conseguidas ilegalmente. Vejamos um apenas.
Há uns anos, em Lisboa, um juiz desempenhando funções de Director Nacional da Polícia Judiciária foi acusado do crime de violação do segredo de justiça, porque numa conversa telefónica com uma jornalista, teria alegadamente revelado que se iriam realizar buscas judiciais a determinados locais. A jornalista fez a notícia e as diligências não se realizaram, pois teriam ficado inutilizadas com a sua divulgação prévia.
A prova do suposto delito existia porque a jornalista, ao falar com a sua fonte, colocara o telefone em alta voz para que a conversa fosse ouvida por dois colegas. Estes vieram, de facto, a ser arrolados como testemunhas de acusação, mas o tribunal não acolheu os seus depoimentos por considerar que eles ouviram ilegalmente a conversa.
E, apesar de todas as evidências contra si, o arguido foi absolvido por falta de provas, pois a conversa entre ele e a jornalista foi considerada uma conversa privada e como tal não podia ser ouvida por terceiros, sem o consentimento de ambos os interlocutores e, no caso, só houvera o assentimento de um deles, ou seja, da jornalista que colocara o telefone em alta voz.
Se essa prova fosse valorada estar-se-ia a legitimar, a posteriori, uma violação da privacidade; e mais do que isso, estar-se-ia a legitimar a violação, no futuro, de muitas outras conversas privadas. Por cada violação da privacidade que se traduzisse em obtenção de provas úteis haveria muitas outras feitas com esse pretexto que não passariam apenas de puras devassas.
A forma é inimiga jurada do arbítrio e qualquer cedência nessa matéria será um passo em direcção à arbitrariedade.
Por isso, no dia em que se aceitar como lícito que jornalistas possam disfarçar-se de sujeitos processuais para retirar dos processos judiciais transcrições de escutas telefónicas para as publicar nos seus órgãos de informação, então é de temer que no futuro se ordenem escutas para serem divulgadas em órgãos de comunicação social.
Igualmente, no dia em que se aceitar que escutas telefónicas feitas em processo penal (e aí consideradas irrelevantes) possam ser aproveitadas para a luta política, então não demorará muito a haver escutas telefónicas para fins políticos.
No limite, poder-se-ia dizer que no momento em que se aceitar que um terrorista possa ser torturado para revelar onde colocou a bomba é certo que daí para a frente muitas outras pessoas - terroristas ou não - irão ser torturadas para revelarem o que não sabem.
Quando não se olha a meios para atingir certos fins, por muito lícitos e relevantes que eles sejam, então entra-se no domínio do fundamentalismo. Na história da humanidade, alguns das piores atrocidades foram feitas em nome dos fins mais altruístas e, pior do que isso, muitas vezes foram levadas a cabo por pessoas imbuídas da maior generosidade.
O estado de direito é assim. Imperfeito e frágil. Ou o respeitamos sempre, apesar das suas imperfeições e fragilidades ou acabamos por torna-lo ainda mais imperfeito e frágil.