Bodisatva

Cansado das lutas e das derrotas e das glórias fugazes, levantou-se e dirigiu-se ao arquivo onde urinou para um monte de caixas poeirentas. Psicodrama encenado, definindo o desprezo que sentia pela sua história de outros tempos.
Despiu o fato regulamentar e em conjunto com a gravata e os sapatos de executivo, ateou-lhes o fogo e saiu rindo às gargalhadas, maníacas, para quase todos, libertadoras, para os menos incautos. O incêndio foi breve e rapidamente controlado pela equipa de emergência eficiente que ele próprio ajudara a criar.
Deu as chaves do seu carro ao arrumador de serviço e mais a carteira com os documentos. Sentiu-se leve e feliz. Sentiu desconhecer o que sentia, esquecido do breve momento da sua infância em que não lhe foi dito para cumprir o destino não cumprido de seus pais.
Lentamente lembrou-se do dia da sua morte, o dia em que aceitou carregar o fardo de ser quem queriam que ele fosse. Era um dia solarengo de Outubro, soalheiro. O que para o caso é irrelevante.
Chegou a casa e escreveu uma carta onde contava da sua boa-nova, a sua ressurreição, à sua mulher-esposa socialmente adequada e escolhida. Não que não gostasse dela, de um certo modo até a amava.
Certo dia de manhã, olhou para ela e viu-a morta enquanto tomava banho. Reconheceu depois, no cadáver sorridente e afável que lhe servia o pequeno-almoço, a sua própria morte. Foi nesse dia em que se resolveu ressuscitar. E dar-lhe a oportunidade de o fazer também ela. Mas Resolveu que não continuaria morto se ela assim o decidisse permanecer.
E assim foi, ela continuou morta e ele decidiu viver.
Deixou tudo para trás, apenas levou alguma roupa e começou a caminhar para onde lhe parecia certo. Nunca mais parou e ainda hoje continua a sua peregrinação pelo mundo fora. Está vivo, feliz. Ajuda outros mortos a voltar à vida.
Chamam-lhe o louco, o alienado, aquele que deitou tudo a perder. Fogem dele, a sua liberdade e paz de espírito causam-lhes incómodo.
Ele apenas sorri e continua o seu caminho.

Sem comentários: